Jesus comia peixes? Nós deveríamos comer peixes?

By Bianca Rati


Texto :
Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, pois serão satisfeitos. - Mt 5:6

Introdução

A bíblia é um livro cheio de mistérios. Alguns destes mistérios são somente espirituais, outros são históricos e talvez todos sejam uma mistura dos dois. Historicamente, os eventos bíblicos ocorreram há muito tempo, em locais e culturas muito diferentes das nossas e é por isso que precisamos ter cuidado ao fazer afirmações sobre a bíblia porque corremos um grave risco de dizer coisas com base neste texto sagrado que não são necessariamente verdades e mandamentos ou que podem ser aplicados desta forma.

Apesar deste cuidado, é possível utilizar as histórias bíblicas e seus ensinamentos como pontos de partida para refletirmos sobre a nossa realidade atual. E é por isso que, apesar de difícil, essas duas perguntas não são irrelevantes, pelo contrário, elas podem nos levar a refletir princípios éticos e cristãos sobre alimentação e em relação aos animais. Sendo assim, podemos criar o hábito de olhar para a bíblia menos como um manual de regras e mais como um livro de princípios pelos quais interpretamos a vida.

1. Jesus comia peixes?

Então, vamos a primeira pergunta: Jesus comia peixes? O primeiro texto que vem à mente para falarmos disso é Lucas 24:41-43 onde Jesus come um peixe assado ofertado pelos seus discípulos. Logo, a partir deste texto, podemos afirmar que Jesus comia peixe. Mas acho que é importante contextualizar esse trecho entendendo como era a alimentação típica da época e região onde Cristo viveu.

Podemos nos lembrar das diversas interações que Jesus teve com os peixes: alguns de seus discípulos eram pescadores e Ele navegou em seus barcos ajudando em pescas, descansando, pregando, ou acalmando tempestades. Jesus também multiplicou pães e peixes para multidões em pelo menos duas ocasiões e encontrou uma moeda dentro da boca de um peixe.

Considerando a geografia das regiões que Jesus habitou (mapa ao lado), podemos perceber a proximidade e o fácil acesso ao mar. Os peixes eram parte comum da alimentação de muitas pessoas do período, como judeus e romanos e eram pescados no mar da Galiléia, Mediterrâneo e no próprio Rio Jordão. O que sabemos é que a maioria da população não tinha acesso fácil à carne de outros animais, especialmente pelo seu alto preço, portanto os peixes acabavam sendo importantes na dieta local.

Além dos peixes, outros alimentos eram importantes na dieta das pessoas do tempo de Jesus: castanhas, frutas como figos, tâmaras e romãs, azeitonas, mel, verduras, trigo, centeio, cevada, mostarda, hortelã entre tantos outros alimentos que estavam presentes na vegetação local e que eram fáceis de cultivar naquele terreno. Diante disto, podemos concluir que Jesus, enquanto homem judeu e pobre, consumia peixes, assim como provavelmente todas as outras pessoas do seu tempo.

2. Devemos comer peixes?

Dito isso, se Jesus comia peixes, é correto que nós façamos o mesmo? Devemos também comer peixes? Assim como a pergunta anterior precisava de um contexto bíblico maior para ser compreendida, para responder essa pergunta precisamos então analisar o nosso contexto atual, especialmente porque ele é tão diferente daquele de Cristo.

Segundo dados da FAO em 2018, 179 milhões de toneladas de vidas marinhas foram retiradas do mar produzindo um valor estimado em US $401 bilhões e aproximadamente 87% da produção foi destinada ao consumo humano. O consumo per capita de pescado pela população mundial aumentou e apresenta elevada importância na alimentação de muitas populações. Estima-se que seu consumo representa 17% da ingestão de proteína animal pela população mundial. Em países como Bangladesh, Camboja, Gana, Indonésia, Serra Leoa, Sri Lanka e pequenos países insulares, os peixes representam até 50% da proteína animal consumida.

A aquicultura, que é como se chama a pesca em cativeiro, geralmente envolve peixes de água doce. A produção via aquicultura foi de 54,4 milhões de toneladas de peixes (47 milhões espécies de água doce e 7,3 milhões espécies marinhas); 17,7 milhões são moluscos e 9,4 milhões crustáceos em 2018 no mundo todo.

Apesar de nossa enorme costa litorânea e das aproximadamente 800 mil pessoas que trabalham e sobrevivem da pesca no Brasil, não temos dados concretos sobre a pesca marítima desde 2011. Já sobre a pesca em água doce, não existem dados produzidos pelos governos desde 2014. Somos o 13o país quanto a produção de peixes em cativeiro, e o 8o na produção de peixes de água doce.

Há uma estimativa, longe de precisa, que anualmente são retirados do mar brasileiro 500 mil toneladas de peixes. Segundo um relatório de 2014 do Ministério do Meio Ambiente a lista de espécies do interesse pesqueiro em ameaça de extinção aumentou de 17 espécies em 2004 para 64 em 20141. No nordeste do país, aqueles que praticam a pesca artesanal estão mais suscetíveis a insegurança alimentar forte e que as mulheres são ainda mais afetadas e têm propensão maior de adquirirem doenças derivadas de movimentos repetitivos23. Apesar do Ministério da Pesca e Aquicultura ter prometido em 2020 que fariam esforços para coletar dados com transparência e auditáveis, e que levariam ao Congresso a proposta para atualizar a Lei da Pesca (que é de 2009), não encontrei notícias recentes sobre essas propostas.

No Brasil e no mundo, a indústria da pesca também é uma grande poluidora do mar. Os equipamentos de pesca geralmente são de plástico e aproximadamente 640 mil toneladas são despejadas nos oceanos todos os anos. Esse lixo plástico causa diversos problemas ambientais e mata muitos animais que se engasgam ou se enroscam nesses dejetos, a cada ano são mortos pelo menos 100 mil. Já a técnica chamada pesca de arrasto, que consiste em enormes redes que são puxadas arrastando o fundo dos oceanos e que tem pouquíssima fiscalização no Brasil, reduz as populações de peixes e de toda a fauna marítima. Altera dramaticamente o solo oceânico e mata grande número de corais, esponjas, etc. Esse tipo de técnica também captura milhares de animais não intencionalmente e que acabam morrendo. Esse dano colateral é chamado de bycatch.

Em 2017 o percentual de ambientes aquáticos de pesca classificados como “biologicamente sustentáveis” caiu para 65,8% (eram 90% em 1974). Boa parte está no limite máximo de captura, ou seja, podem entrar em sobrepesca a qualquer momento.

Por fim, precisamos falar sobre os peixes em si. Mais de 360 espécies de peixes são pescados no mundo. De forma geral, os estudos sobre peixes ainda são recentes. Isso também pode demonstrar um certo desinteresse ou distância dos humanos quanto a vida aquática.Temos muitas crenças sobre peixes, que eles têm a memória quase inexistente, que não sentem dor, que não tem nenhum tipo de inteligência. Hoje estudos já demonstraram que os peixes são sencientes, ou seja, tem habilidade de sentir dor por exemplo e têm preferências por certos ambientes em detrimento de outros. Além disso, eles têm memória, inclusive de anos, e utilizam dela para se localizarem, defenderem de perigos e se alimentarem.

Conclusão

Diante disso, devemos comer peixes? A verdade é que essa é uma resposta mais complexa que sim ou não. Porque dizer um simples sim ou não é apagar as nuances. Muitos de nós olharemos estes dados e teremos condições de fazer a escolha individual de não apoiar mais financeiramente esta indústria, escolhendo parar de comer peixes. Outros de nós não terão este mesmo privilégio, seja por falta de acesso a uma diversidade alimentar, seja por questões financeiras, seja por questões de saúde.

Sim, Jesus comia peixes. Mas não podemos comparar a pesca nos tempos de Cristo com a indústria pesqueira, nem em escala (ou seja, a quantidade de vidas que tira das águas), nem na forma que realiza essa atividade. Além disso, hoje nós sabemos e conhecemos muito mais sobre os peixes do que nos tempos de Jesus. Naquela época é provável que as pessoas nem considerassem os peixes como animais, pelo menos não da forma que enxergavam porcos, pássaros, cavalos, etc. É interessante perceber como até os dias atuais costumamos colocar os peixes (e a vida aquática de forma geral) como uma categoria de animais de menor valor. Muitas pessoas, quando param de comer animais, são questionadas: “mas peixe você come né? Nem um peixinho?”. Isso é porque até conseguimos compreender ter empatia pelas vacas, porcos e galinhas, mas pelos peixes não.

E diante de tantas diferenças com a realidade material da vida de Cristo, talvez seja mais produtivo nós olharmos não somente para as Suas ações individuais mas para os princípios que promoveu. Cristo pregou sobre a vida e vida em abundância, se associou com as pessoas pobres, doentes e marginalizadas e sobre justiça. Pensando em todas essas questões que vimos, talvez essa ampla relação de Cristo com pescadores e o fato de se alimentar de peixes tenha muito mais a ver com as mesas onde Ele escolhia participar do que com a sua “dieta” preferida. Ele participava das mesas marginalizadas, das mesas de comunhão, das mesas do perdão e da justiça.

É muito comum vermos pessoas cristãs usando um peixinho na traseira dos seus carros como símbolo de fé e identidade. Esse símbolo, chamado de Ichtus, surge com a perseguição dos primeiros cristãos e era usado como código de identificação de espaços cristãos secretos. Eram duas letras que, quando usadas juntas, formavam essa imagem de peixe. Mas o Ichtus não é somente um símbolo de identificação cristã, ele também é um símbolo de resistência a um império que massacrava vidas animais humanas e não-humanas. Sendo assim, acredito que não cabe a mim dizer se cristãos devem ou não comer peixes, mas posso dizer com segurança que como cristãos devemos refletir sobre nossas práticas, hábitos e posicionamentos diante de indústrias imperialistas e opressoras.

Referências

Coleman, William L. Manual dos Tempos e Costumes Bíblicos. Venda Nova: Editora Betânia, 1991.

Brasil não produz dados sobre pesca marítima
O protagonismo do Brasil na produção de pescado
Vídeo: Catholic Concern for Animals in conversation with Prof. David Clough on fish welfare Sobre a memória dos peixes
Checagem dos dados apresentados no documentário Seaspiracy
Sobre a pesca de arrasto

1. ((o))eco. “Pesca No Escuro: Brasil Não Sabe a Situação de 94% Dos Peixes Que Explora - ((O))Eco,” December 13, 2020. https://oeco.org.br/reportagens/pesca-no-escuro-brasil-nao-sabe-a-situacao-de-94-dos-peixes-que-ex plora/.
2. Patrízia Abdallah, and Vivian Queiroz. “Trabalhadores Da Pesca Em Condição de Insegurança Alimentar Na Região Nordeste.” Accessed April 11, 2022. https://editora.pucrs.br/edipucrs/acessolivre/anais/encontro-de-economia-gaucha/assets/edicoes/201 8/arquivos/40.pdf.
3. Rêgo, Rita Franco, Juliana dos Santos Müller, Ila Rocha Falcão, and Paulo Gilvane Lopes Pena. “Vigilância Em Saúde Do Trabalhador Da Pesca Artesanal Na Baía de Todos Os Santos: Da Invisibilidade à Proposição de Políticas Públicas Para O Sistema Único de Saúde (SUS).” Revista Brasileira de Saúde Ocupacional 43, no. suppl 1 (December 3, 2018). https://doi.org/10.1590/2317-6369000003618.